Autoridade do Estado no Mar IV - alguma cronologia comentada de Setembro de 1982 a Dezembro de 1983

30 Setembro 1982 – Lei Constitucional 1/82 – 1.ª Revisão constitucional – Delimitam-se as fronteiras entre segurança interna e defesa nacional. São aprovados os seguintes artigos referentes ao assunto:

ARTIGO 272.º
(Polícia)
1. A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2. As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.
3. A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4. A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.
… …

ARTIGO 275.º
(Forças Armadas)
1. Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República.
2. As Forças Armadas compõem-se exclusivamente de cidadãos portugueses e a sua organização baseia-se no serviço militar obrigatório e é única para todo o território nacional.
3. As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei.
4. As Forças Armadas estão ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias e os seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou da sua função para qualquer intervenção política.
5. As Forças Armadas podem colaborar, nos termos da lei, em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações.
6. As leis que regulam os regimes do estado de sítio e do estado de emergência fixam as condições do emprego das Forças Armadas quando se verifiquem aquelas situações.

Uma interpretação literal deste articulado levaria a que a Marinha deixasse de poder ocupar-se do serviço de busca e salvamento, dos faróis, do aquário Vasco da Gama, da poluição marítima, do serviço das Capitanias, da fiscalização das águas sob soberania ou jurisdição nacional e de todo o serviço que fazia o Corpo de Polícia Marítima.
Porém, até à data da publicação da lei o governo não tomou nenhuma medida (em meios humanos, materiais e organizacionais) para em devido tempo substituir a Marinha em qualquer destas funções. Também, como se viu, a Assembleia da República não se pronunciou sobre o assunto, nem mesmo quando foram discutidos os artigos referentes às missões da Forças Armadas. Por outro lado, a Marinha, que certamente estaria informada do andamento da revisão constitucional, também (que se saiba) não manifestou qualquer desejo de se ver escusada do que, há mais de um século, vinha fazendo. E o mesmo se terá passado, calcula-se, com a Força Aérea.
O abandono súbito de todas estas funções à data da publicação da revisão constitucional (repete-se: fiscalização das águas de interesse nacional, serviço das capitanias e do assinalamento marítimo, busca e salvamento, serviço da Polícia Marítima, etc.) seria, por motivos evidentes, impensável, tais as responsabilidades nacionais e os compromissos internacionais envolvidos que ficariam irremediavelmente comprometidos. Com vidas humanas em jogo, também.
Para a Marinha, que tinha toda uma estrutura (meios, quadros de pessoal, etc…) adaptada a esta situação, uma alteração desta natureza traria inevitáveis consequências negativas e, a ocorrer, teria que ser devidamente ponderada e assegurada por uma transição lenta e progressiva. Seria também necessária a aquisição de novos meios (navios, aviões…) e a contratação de (bastante) mais pessoal para uma, ou mais, estruturas que viessem desempenhar aquelas tarefas. 
Excluindo-se a hipótese de ignorância da situação (basta ver as transcrições das sessões da Assembleia da República atrás mencionadas), só se pode concluir que o poder político e as Forças Armadas tinham por consensual que estas disposições da Constituição não se aplicavam literalmente ao que a Marinha e a Força Aérea vinham a fazer para além do que estritamente estava ligado à defesa militar do país. Algumas intervenções nos plenários da Assembleia da República revelam não só que o assunto em causa era do perfeito conhecimento do poder político, como também que este considerava ser dever da Marinha e da Força Aérea defender a Zona Económica Exclusiva e as águas territoriais de agressões ao seu património.
Também se deverá ter em conta o clima em que se desenrolou esta 1.ª revisão constitucional. Veja-se o que dezoito anos mais tarde (no âmbito do Colóquio “Forças Armadas em Regime Democrático”, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa, Fevereiro de 2000) disse sobre isto o Dr. Freitas do Amaral – que, como Presidente do CDS, um dos partidos que mais pugnaram pela revisão, a acompanhou de muito perto (muito provavelmente, sendo também o Ministro da Defesa Nacional, terá sido o autor das alterações relativas às Forças Armadas):   

“... ...
A certa altura, os partidos à direita do PS começam a exigir uma revisão constitucional, uma alteração profunda do sistema – a extinção tão breve quanto possível do Conselho da Revolução, a subordinação das Forças Armadas ao poder civil –, e o Partido Socialista começa a dividir-se, ele que fora o elemento de construção daquela solução. O Dr. Mário Soares e os seus apoiantes aceitam a inevitabilidade e a desejabilidade dessa evolução, num sentido europeu e democrático. Outros elementos destacados do Partido Socialista rejeitam tal modelo e querem uma espécie de presidencialismo militar em torno do General Eanes. Entendamo-nos, não estou a dizer que se quisesse um presidencialismo militar como regime político para o país, estou a dizer que se queria que, no tocante ao governo das Forças Armadas, a competência fosse exclusivamente do Presidente da República e não do Governo; queria-se, por outras palavras, uma subordinação das Forças Armadas ao Presidente da República directamente, e não ao Governo através do Ministro da Defesa Nacional.
Gera-se aqui um conflito político claro que não foi violento, felizmente, que não pôs em perigo o regime democrático, felizmente, mas que de facto foi, sobretudo nos anos de 80 a 82, um factor de divisão e de perturbação da vida política portuguesa.”

Com estas magnas questões em apreço não de todo pacífico (no fundo, a saída dos militares da vida política do país ou, como então se dizia “o regresso dos militares aos quartéis”) parece compreensível que não se quisesse em simultâneo abrir excepções na lei – embora tacitamente elas fossem admitidas: era essa a vontade do poder político, com o assentimento da Marinha e da Força Aérea.
Em todo o caso, a interpretação que se fez da Constituição a partir da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas que literalmente dizia uma coisa e permitia que se fizesse outra, e isto escassos dois meses depois da revisão constitucional (ver entradas seguintes, até 11 Dezembro 1982, e em especial 25 Novembro 1982) não poderia deixar de vir a causar no futuro situaçõeste confusas. Era uma “quadratura do círculo”, que se vem arrastando sem solução clara há mais de trinta anos, com inevitável repercussão na produção legislativa sobre a matéria (que, a partir da reforma de 2002, inclusive, também “vai mudando alguma coisa para que tudo fique na mesma”).

Esta falta de clareza é o “pecado original” da 1.ª revisão constitucional no que às Forças Armadas diz respeito. E é absolutamente lamentável que tenha acontecido
Mas, se mesmo assim o CEMA, Almirante Sousa Leitão, tivesse questionado o Ministro da Defesa e Vice-Primeiro Ministro, Dr. Freitas do Amaral, não poderia ter recebido outra resposta que não idêntica à que, na Assembleia da República, este deu ao deputado Lopes Cardoso aquando da discussão da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (ver 25 Novembro 1982). E portanto que deveria, até indicação em contrário, continuar a desempenhar todas as suas tarefas como até ali vinha fazendo.
E assim aconteceu, sem que qualquer voz se levantasse em defesa do contrárioo que certamente teria sucedido se algum partido entendesse que a acção da Marinha e da Força Aérea era, agora, inconstitucional. Ficava-se então a aguardar a publicação da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, a ser preparada pelo MDN, que se viria a ser discutida de seguida na Assembleia da República e publicada muito em breve.

7 Outubro 1982 – depois de um processo que não foi pacífico, Diogo Freitas do Amaral, vice-Primeiro Ministro e Ministro da Defesa, apresenta formalmente na Assembleia da República a proposta de lei n.º 129/II, sobre Defesa Nacional e Forças Armadas, do qual é o principal autor (tal como certamente já o havia sido no tocante aos artigos da revisão constitucional referentes ao mesmo tema). Vejam-se mais alguns excertos da intervenção que fez no âmbito do já citado Colóquio “Forças Armadas em Regime Democrático”, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa, Fevereiro de 2000.

“… …
Coube-me, como sabem, a tarefa muito estimulante e interessante de preparar o projecto de proposta de lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Tive ocasião de nessa tarefa ouvir muito os civis e os militares, fiz mais de uma dezena de palestras seguidas de debate em institutos de ensino superior militar, recebi antigos Ministros da Defesa militares, falei vezes sem conta com os Chefes de Estado-Maior e com outros elementos militares destacados.
… …
Mas a crispação que existiu nesse período era de tal maneira forte que, quando o projecto começou a ser apreciado em Conselho de Ministros, já portanto muito próximo da altura em que iria ser enviado à Assembleia da Republica, eu recebi um convite do Conselho da Revolução para lá ir expor as linhas gerais do projecto e responder a dúvidas ou a críticas que me desejassem fazer. Como gosto desse tipo de desafios, propus em Conselho de Ministros que me fosse dada autorização para fazer isso, mas o Conselho por unanimidade proibiu-me de ir ao Conselho da Revolução, e disse que não podia haver nenhum contacto.
… …
A própria preparação da revisão constitucional e da subsequente lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas foi algo conturbada nos meses finais.
… …
Como eu me apercebi de que este ambiente era difícil, resolvi convidar o Ministro da Defesa Nacional de França, que era um socialista… … Ele aceitou o convite, esteve cá três dias, falou várias vezes comigo, falou com o Presidente Eanes, falou com os vários partidos políticos e falou com vários membros do Conselho da Revolução. Houve então dois membros do Conselho da Revolução que lhe disseram que, se o projecto de revisão constitucional e de lei de Defesa Nacional que estava acordado entre a AD e o PS fosse por diante, eles viriam novamente para a rua e fariam outro 25 de Abril. O que levou o Ministro Hernu no último dia da sua estadia em Portugal, em plena Embaixada de França, a chamar-me de lado e a dizer-me: – estou preocupadíssimo, isto está a rebentar! Eu disse-lhe: – esteja descansado, não vai acontecer nada, isso foi apenas para ver se me metiam medo e se eu recuava em duas ou três soluções, mas esteja descansado que não vai acontecer nada. E de facto não aconteceu nada...
… …
desde o início o Primeiro-Ministro e eu decidimos que aquelas alterações, nomeadamente a questão da nomeação das chefias militares e as outras questões que tinham de ser abordadas, teriam de ser decididas por consenso entre a maioria AD e o Partido Socialista.
… …
Não vou, naturalmente, fazê-los perder tempo com pormenores acerca da lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, que é bem conhecida da parte de todos, vou dizer apenas que no fundo estavam em causa três ou quatro problemas principais: o primeiro problema era o do papel do Presidente da República relativamente às Forças Armadas; o segundo era o regime de nomeação dos Chefes de Estado-Maior, se deveria ser feita apenas pelo Presidente da República ou sob proposta do Governo, embora por nomeação do Presidente da República; terceiro, se a subordinação das Forças Armadas ao poder civil se devia fazer através do Presidente da República ou através do Ministro da Defesa Nacional; e quarto, qual o grau de autonomia interna de que as Forças Armadas deveriam dispor no quadro deste novo arranjo estrutural.
… …
A reforma fez-se. Houve uma votação alargada na Assembleia da República. Houve um veto do Presidente da República (também já estará esquecido, mas o Presidente Ramalho Eanes entendeu vetar a primeira versão da lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas) e depois houve uma segunda leitura, em que aliás não se introduziram alterações, com o voto da maioria parlamentar AD e do Partido Socialista. De facto, ultrapassaram-se então os dois terços exigidos pela Constituição, e a lei foi efectivamente aprovada e promulgada.
… …
Bom, portanto creio que com dificuldades, com alguma crispação, com momentos difíceis como as tais greves gerais ou as tais ameaças feitas ao Ministro francês, as coisas acabaram por correr bem, e penso que foi de facto um momento muito significativo. Eu acho que a revolução em Portugal teve dois momentos em que terminou: terminou primeiro nas ruas e nos quartéis com o 25 de Novembro de 1975; e terminou depois nas instituições com a aprovação da revisão constitucional de 82 e com a lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, também no final de 82. Foi portanto, a meu ver, um momento decisivo.”
… …

8 Outubro 1982 Diário da Assembleia da República I Série - Número 134. Reunião Plenária de 7 de Outubro de 1982
… …
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passamos agora à apresentação, por parte do Governo, das propostas de lei n.ºs 129/II, sobre defesa nacional e forças armadas.
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O Sr. Vice-Primeiro-Ministro e Ministro da Defesa (Diogo Freitas do Amaral): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Governo tem a honra de apresentar formalmente ao Plenário da Assembleia da República a proposta de lei de defesa nacional e das forças armadas.
… …
Com efeito, é na lei de revisão constitucional que se consagra um novo conceito de defesa nacional; que se restringe a missão primária das Forças Armadas à defesa militar da República; que se elimina o Conselho da Revolução; que se redistribuem as competências relativas à defesa nacional e às Forças Armadas pelos diferentes órgãos de soberania; que se determina o modo de nomeação e exoneração das chefias militares; que se constitucionaliza a existência do Conselho Superior de Defesa Nacional; que se legitimam as necessárias restrições ao exercício de certos direitos por militares, e que se permite o emprego das Forças Armadas em estado de sítio ou de emergência, bem como para a colaboração em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações.
Tudo isto decorre da revisão constitucional: quer se goste, quer não, do que então foi aprovado, não será agora legítimo pretender conformar a lei de defesa nacional e das Forças Armadas sem ter em conta o sentido e o alcance das alterações votadas em sede de revisão constitucional. O debate desta lei tem de ser um prolongamento e uma execução da revisão constitucional, não pode ser uma desforra da revisão constitucional.
… … É importante afirmar e esclarecer aqui, na Assembleia da República, que essa redução da defesa nacional a tarefas relacionadas com a ameaça externa não acarreta como consequência que o Estado possa ignorar a eventualidade da ameaça interna, nem que as Forças Armadas não possam ser chamadas em certas situações de excepção a contribuir para assegurar a ordem constitucional democrática, nem que as forças de segurança não tenham de ser coordenadas com as Forças Armadas.
O conceito adoptado visa, sim, demarcar a área normal de intervenção de umas e outras forças, delimitar esferas de atribuições de ministérios diferentes e sublinhar a missão primária e a vocação específica de cada instituição, sem prejuízo da necessária articulação e cooperação de todas para a realização integral dos fins do Estado.
… …
Sendo certo, como disse, que as grandes linhas da presente proposta de lei se encontram imperativamente pré-estabelecidas e conformadas pela Constituição revista, não é menos verdade que em diversos pontos importantes o legislador constituinte foi ou quis ser omisso, cabendo assim ao legislador ordinário providenciar no plano que é o seu, da maneira que julgar mais adequada ao interesse nacional.

Aparentemente, o Dr. Freitas do Amaral está a abrir uma porta para outras tarefas – por exemplo, as que a Marinha e a Força Aérea vêm desempenhando no mar e em assuntos com ele relacionados.

… …
Assim, para além das opções feitas em sede de revisão constitucional - em que não entrarei aqui -, os principais problemas que se punham na elaboração da proposta de lei de defesa eram 5:
1.º Localização das Forças Armadas no Estado;
2.º Poderes do Presidente da República, da Assembleia da República e do Governo;
3.º Caracterização do cargo de Ministro da Defesa Nacional;
4.º Competência própria das chefias militares;
5.º Definição das restrições ao exercício de certos direitos por militares.
… …
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Procurei expor-vos sinteticamente os pontos essenciais da proposta de lei de defesa nacional e das Forças Armadas.
O texto que vos apresentei foi preparado com os maiores cuidados e através de um longo e paciente processo de consultas.
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13 Outubro 1982 Diário da Assembleia da República I Série - Número 136. Reunião Plenária de 12 de Outubro de 1982
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos continuar o debate sobre a proposta de lei n.º 129/II, sobre a defesa nacional e as Forças Armadas
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O Sr. Mário Tomé (UDP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta lei de defesa nacional, como lhe chama a AD, verdadeiro código da instrumentalização das Forças Armadas e verdadeiro regulamento da acção directa sobre a classe operária e os trabalhadores, não é, apesar disso, um golpe de estado, nem sequer um golpe legislativo,
… …
Toda a lógica desta lei vai no sentido de garantir a defesa dos interesses de classe da burguesia e do imperialismo e destina-se a montar, com urgência, todos os mecanismos necessários à repressão da classe operária e dos trabalhadores na perspectiva do aprofundamento da crise e do crescimento da revolta popular.
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Com as costas quentes pela possibilidade de intervenção militar a mando do Governo, as forças repressivas garantem a segurança interna com a ajuda dos serviços de informação, das empresas fascizantes chamadas de segurança industrial … … conforme o artigo 272.º da revisão constitucional, que pela primeira vez consagra a sinistra figura político-jurídica da segurança interna.
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O Orador [Fernando Condesso (CDS)]: É esta a concepção que flui da proposta da Governo, a qual não é prejudicada pelo facto de se prever a colaboração das forças policiais em tempo de guerra, pois que aí se estará perante uma tarefa de defesa nacional por parte das forças que normalmente são destinadas a desarticular ameaças internas, o que não é constitucionalmente proibido e que, de qualquer modo, é excepcional, tal como não é prejudicada pelo facto de as Forças Armadas poderem ser empregues, excepcionalmente, em tarefas de segurança interna, porquanto é também permitido pela Constituição ao prever, no n.º 6 do artigo 275.º, tal ocorrência, nos estados de sítio e emergência, o que de qualquer modo não passa de missões das Forças Armadas fora do âmbito da defesa nacional.
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não há mais inscrições na Mesa, pelo que declaro encerrado o debate.
Vamos, assim, proceder à votação da proposta de lei n.º 129/II, sobre a defesa nacional e a organização das Forças Armadas.
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Submetida à votação, foi aprovada, com votos a favor do PSD, do CDS e do PPM, com votos contra do PCP, da UEDS, do MDP/CDE e da UDP e as abstenções do PS e da ASDI.
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30 Outubro 1982 Diário da Assembleia da República I Série - Número 6 – Sábado, Reunião Plenária de 29 de Outubro de 1982
SUMÁRIO.
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Após ter sido lido um relatório da Comissão de Defesa Nacional, procedeu-se à votação final global da proposta de lei n.º 129/II - Defesa Nacional e Forças Armadas -, que foi aprovada.
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O Sr. Presidente: - Permitam-me Srs. Deputados, que os informe da situação quanto à nossa ordem de trabalhos,
O primeiro ponto da ordem do dia, como terão presente, respeita à votação final global da proposta de lei n.º 129/II - Defesa Nacional e Forças Armadas. Os trabalhos da Comissão de Defesa Nacional terminaram esta manhã, o relatório está elaborado, está corrigido e neste momento encontra-se - ao que me informam os serviços de apoio - ainda a ser reproduzido em quantidade suficiente para ser distribuído pelos vários grupos parlamentares e pelos Srs. Deputados que o desejarem.
… …
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, para a leitura do relatório da Comissão de Defesa Nacional sobre a discussão e votação na especialidade da proposta de lei n.º 129/II - Defesa Nacional e Forças Armadas, tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Condesso, presidente da referida Comissão.
O Sr. Fernando Condesso (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O relatório da Comissão de Defesa Nacional sobre a proposta de lei n.º 129/II - Defesa Nacional e Forças Armadas, é do seguinte teor:
«A proposta de lei sofreu alterações em grande parte do articulado, tendo ainda sido objecto de modificações de ordem sistemática e da eliminação do capítulo referente ao estado de sítio e estado de emergência.
A versão resultante do texto de substituição, que acompanha o presente relatório, foi aprovada na especialidade, e, com excepção do artigo 72.º, sempre por maioria superior a dois terços ou por unanimidade, não tendo a UDP participado nas votações.
Encontra-se, pois, em condições de subir a Plenário da Assembleia da República, para votação final global.
… …
Lisboa, Palácio de São Bento, em 29 de Outubro de 1982.»
… …
O Sr. Presidente: - … …Vamos, portanto, proceder à votação final global da proposta de lei n.º 129/II, depois de ter sido apreciada e votada em sede da Comissão de Defesa Nacional, cujo relatório já foi lido.
Submetida à votação, foi aprovada, com 143 votos a favor (do PSD, do PS, do CDS e do PPM), 37 votos contra (do PCP, do MDP/CDE e da UDP) e 6 abstenções (da ASDI e da UEDS).
… …

Enquanto os artigos da revisão constitucional que diziam respeito às Forças Armadas mereceram o apoio quase unânime do hemiciclo, na Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas há uma clara divisão entre a esquerda e a direita (mais PS), com a abstenção da ASDI e da UEDS. 

O Sr. Presidente: - Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Veiga de Oliveira.
O Sr. Veiga de Oliveira (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: A proposta de lei n.º 129/II - Defesa Nacional e Bases Gerais da Organização, Funcionamento e Disciplina das Forças Armadas -, que acabamos de votar, em votação final global, mereceu a nossa mais viva oposição e o voto contrário do Grupo Parlamentar do PCP. E nem poderia deixar de assim ser.
… …
Viabilizam-se os objectivos sectários da direita, colocando na sua inteira disponibilidade o poder de controlar e manipular a instituição militar.
… …
O texto agora aprovado não consagra a «subordinação das Forças Armadas ao poder político»; abre sim caminho à sua subordinação ao Governo, à maioria de cada momento e aos seus interesses sectários.

Na sessão anterior chegou a usar-se a expressão “freitização das Forcas Armadas”.
… …
A delimitação de competências dentro do Governo em matéria de Defesa Nacional e Forças Armadas concentra no Ministério da Defesa Nacional e mais propriamente no Ministro, poderes desmesurados, propiciando tendências antidemocráticas, totalitárias e mesmo golpistas.
… …
Donde, representa uma grosseira violação da lei de revisão e da Constituição, a inclusão na lei agora aprovada de quaisquer normas que visem restringir o exercício dos direitos dos militares e dos agentes militarizados.
… …
As normas restritivas agora aprovadas foram estendidas aos agentes da PSP, em nova e gritante violação do artigo 270.º da Constituição.
… …
O Sr. Presidente: - Também para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Herberto Goulart.
O Sr. Herberto Goulart (MDP/CDE): … … A subordinação das Forças Armadas ao poder político, que no quadro da presente realidade portuguesa, sempre defendemos que devia assentar num entrosamento entre os diferentes órgãos de soberania, ficou nesta lei concretizada por uma exagerada e perigosa-dependência do poder executivo. Durante o debate na generalidade falámos da governamentalização das Forças Armadas e da sua potencial instrumentalização partidária. O que se passou na Comissão de Defesa, pela votação na especialidade, foi um acentuar destas perigosas características.
… …
A Lei da Defesa Nacional e Forças Armadas, que esta Assembleia da República acaba de votar é, do ponto de vista do MDP/CDE, um perigoso instrumento nas mãos da AD.
… …
O Sr. Presidente: - Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Mário Tomé.
O Sr. Mário Tomé (UDP): … …
Escamoteando o carácter de classe do Governo e das Forças Armadas, abre-se o caminho para o ataque ao inimigo interno - todos aqueles que não comungarem das perspectivas e dos desígnios oficiais - e para a necessidade de empenhamento das Forças Armadas na segurança interna!
… …
«Subordinação do poder militar ao poder civil», ou seja, a mascarada para descansar os burgueses com pruridos mais liberais ou democráticos, enquanto as forças do imperialismo e dos monopólios se instalam cada vez melhor, com as costas bem guardadas pela «instituição» que os trabalhadores julgariam para defendê-los.
Facilmente a hierarquia militar aceitou a chamada subordinação aos civis, desde que ficou bem garantido o seu poder absoluto sobre os militares, sobre as suas opções, os seus actos, a sua própria consciência.
… …
Sr. Presidente. Srs. Deputados: A Lei do Tribunal Constitucional ontem aprovada e a Lei de Defesa Nacional são, de facto, o fecho da revista reaccionária da Constituição.
… …

Como se vê por estas declarações de voto, os reparos dos partidos que votaram contra a revisão constitucional não se prendem com nada relacionado com as missões da Marinha e da Força Aérea relativas aos assuntos do mar, fiscalização, busca e salvamento, etc. Quanto aos partidos mais à esquerda, verifica-se agora que votaram positivamente o art.º 275.º da Constituição (revista), querendo confinar as Forças Armadas a intervenções contra agressões externas (mas admitindo implicitamente a excepção dos assuntos do mar), com a proposta lei da Defesa Nacional receiam que elas passem a estar excessivamente governamentalizadas e, em última análise lhes sejam cometidas missões de segurança interna e se virem contra as lutas dos trabalhadores. Mas mais uma vez os assuntos do mar (fiscalização da ZEE, Polícia Marítima, busca e salvamento, etc.) não são mencionados.
O seu artigo 24.º, referente às missões das Forças Armadas, é do seguinte teor:

ARTIGO 24.º
(Missões das Forças Armadas)
1 - A missão genérica das Forças Armadas consiste em assegurar a defesa militar contra qualquer agressão ou ameaça externas.
2 - Dentro da missão genérica referida no número anterior, serão definidas pelo Conselho Superior de Defesa Nacional as missões específicas das Forças Armadas, mediante proposta do Ministro da Defesa Nacional elaborada sobre projecto do Conselho de Chefes de Estado-Maior.
3 - A lei regula os termos em que as Forças Armadas podem desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado ou colaborar em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, sem prejuízo da missão genérica referida no n.º 1.

Se analisarmos com rigor este articulado, verificaremos que não está em exacta consonância com o disposto no novo art.º 275.º da Constituição.
Em primeiro lugar, enquanto o n.º 1 deste artigo estipula que “Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República”, o n.º 1 do art. 24.º do projecto de Lei agora em apreço é bem mais amplo quando diz, por outras palavras, que essa é a sua “ missão genérica”. Isto leva a admitir que as Forças Armadas possam desempenhar outras missões – certamente não incluídas nas também admitidas tarefas de colaboração que especifica, e que revestem um carácter de excepcionalidade.
Em segundo lugar, o n.º 5 daquele artigo dispõe que “As Forças Armadas podem colaborar, nos termos da lei, em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações”, enquanto o n.º 3 do art.º 24.º acrescenta algo mais: A lei regula os termos em que as Forças Armadas podem desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado ou colaborar em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, sem prejuízo da missão genérica referida no n.º 1”.
Admite-se então, aliás em consonância com o disposto no número 1, que as Forças Armadas, para além de poderem colaborar “em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações”, também podem, nos termos que uma lei “ad hoc” regular, “desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado”.   
Estas alterações não são de somenos importância! Freitas do Amaral, abre agora a porta, por exemplo, para as sempre citadas tarefas que a Força Aérea e a Marinha (incluindo o Corpo da Polícia Marítima) vêm desempenhando na fiscalização marítima (e nos serviços das Capitanias, dos faróis, etc., etc., etc.).
Um mês depois da publicação da Lei de revisão constitucional, Freitas do Amaral, aparentemente, tenta clarificar o sentido do que atrás de se definiu como o seu “pecado original”. A Assembleia da República aceitou o art.º 24.º proposto por Freitas do Amaral (com uma ligeira alteração no n.º 1. Foi proposto: “A missão genérica das Forças Armadas consiste na defesa militar da República”. Foi aprovado: “A missão genérica das Forças Armadas consiste em assegurar a defesa militar contra qualquer agressão ou ameaça externas”).
O diploma, depois de aprovado na assembleia da República, segue agora para apreciação do Presidente da República. 

19 Novembro 1982 – dá entrada na Assembleia da República o veto do Presidente da República ao Decreto n.º 90/II, de 29 de Outubro último, sobre a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas.
… …
Isso não o impede [ao Presidente da República] de apontar diversas inconstitucionalidades de que se lhe afigura o documento enferma.
Assim acontece, em primeiro lugar com o artigo 24.º, n.º 3.
Nos termos do artigo 275.º da Constituição, “às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República”.
Quis-se ostensivamente restringir a missão das Forças Armadas à defesa contra o inimigo externo.
O n.º 5 do mesmo artigo vem permitir, complementarmente, a colaboração das Forças Armadas, nos termos da Lei, “em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações”.
Nenhuma outra missão lhes é autorizada, designadamente, a de cooperarem na manutenção da ordem interna.
O n.º 3 do artigo 24.º do Decreto em apreço estabelece, contudo, que a Lei regula os termos em que as Forças Armadas podem desempenhar, não só as tarefas referidas no n.º 5 do artigo 275.º da Constituição, como outras missões de interesse geral a cargo do Estado. Neste último aspecto, afigura-se que o diploma ofende a Constituição.
… …
Livro “A Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas”, p. 487 – Diogo Freitas do Amaral

O que atrás se disse está em consonância com esta dúvida do Presidente da República.

25 Novembro 1982 Diário da Assembleia da República I Série - Número 18 – Reunião Plenária de 24 de Novembro de 1982

Ordem do dia. - Procedeu-se à reapreciação, na generalidade, do Decreto n.º 90/II, de 29 de Outubro último, sobre a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, vetado por S. Ex.ª o Presidente da República.
… …
O Decreto vetado foi aprovado de novo na generalidade, por maioria de dois terços dos deputados presentes, tendo baixado à Comissão de Defesa Nacional para apreciação na especialidade.
… …
O Sr. César de Oliveira (UEDS): - … …
Sr. Presidente, Srs. Deputados: O texto revisto da Constituição, assim como os artigos 1.º, 2.º e 3.º do diploma agora vetado pelo Sr. Presidente da República, determina que as Forças Armadas não podem ter outras missões, sem ser as que decorram de qualquer ameaça ou agressões externas. Todavia, o n.º 5 do artigo 275.º do texto revisto da Constituição admite a possibilidade de outras missões aí especificadas e não se vê que o n.º 3 do artigo 24.º do diploma que agora reapreciamos infrinja as disposições do artigo 275.º da Constituição, seja porque nesse mesmo n.º 3 se confinam essas missões, sem prejuízo do consagrado no n.º l do mesmo artigo, seja, ainda, porque o artigo 24.º tem de necessariamente ser lido à luz do consagrado nos Princípios Gerais da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas. Nesta matéria não se vê que o diploma ofenda a Constituição, e é nossa opinião que, seja qual for a leitura que dele se fizer, está definitiva e absolutamente excluída qualquer interpretação que associe às missões das Forças Armadas outras quaisquer missões fundadas numa concepção de defesa nacional alargada à segurança interna ou à manutenção da ordem pública.

Atente-se que a UEDS sempre defendeu veementemente o empenhamento da Marinha e da Força Aérea na fiscalização e defesa das nossas águas. Nada indiciando que alterou a sua posição, estas tarefas estão, portanto, fora do contexto da segurança interna.  

O Sr. Vice-Primeiro-Ministro e Ministro da Defesa (Freitas do Amaral): … …
A mensagem presidencial de 19 de Novembro, apresenta 5 tipos de razões para o veto à Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas: insuficiência dos poderes atribuídos ao Presidente da República; latitude excessiva dos poderes conferidos ao Ministro da Defesa Nacional; insuficiência dos poderes reconhecidos às chefias militares; lapsos e contradições de redacção e por fim, inconstitucionalidades diversas.
… …
Entremos agora no quinto e último grupo de razões invocadas para fundamentar o veto presidencial à Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, e que consiste na alegação de diversas inconstitucionalidades.
… …
Na p. 8 da mensagem, argumentou-se com a pretensa inconstitucionalidade do artigo 24.º, n.º 3, porque se diz que a Constituição não permite que as Forças Armadas desempenhem qualquer missão na defesa da ordem interna.
Ora não é assim, porque a Constituição expressamente prevê, no seu artigo 275.º, n.º 6, a participação das Forças Armadas na manutenção da ordem interna, pelo menos em caso de estado de sítio e de estado de emergência.
A primeira alegação de inconstitucionalidade não tem, pois, o mínimo fundamento.

Freitas do Amaral “foge” à argumentação presidencial, que refere, não o envolvimento das Forças Armadas em estado de sítio e em estado de emergência, mas sim outras missões de interesse geral a cargo do Estado”.

… …
Sr. Presidente, Srs. Deputados: à análise, ponto por ponto, dos fundamentos apresentados na mensagem presidencial para o veto à Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, leva o Governo à conclusão de que não há razões para alterar o texto anteriormente votado nesta Casa.
O Sr. Veiga de Oliveira (PCP): … … Relativamente à missão das Forças Armadas, V. Ex.ª fez um passo de mágica, como bom professor de Direito, quando disse que a Constituição até prevê, designadamente no estado de sítio e no estado de emergência, que elas tenham missões no que diz respeito à segurança interna. Só que não é «até prevê» e «designadamente», porque só nesse caso é que isso é previsto na lei.
Mas ninguém questionou esse aspecto. O que está questionado é que se acrescentem missões indeterminadas quando isso possa ser supostamente conveniente para o Estado, sem dizer em quê e porquê. Porque aquilo que está previsto na Constituição de uma forma taxativa, isto é, o uso das Forças Armadas em situações de estado de sítio e de estado de emergência, não está naturalmente questionado.
… …
… …
O Sr. César de Oliveira (UEDS): … … Tal proposta de lei resultava, como foi dito pelo Prof. Freitas do Amaral, de um extenso e profundo processo de auscultação dos comandos militares e reflectiria, segundo o mesmo Prof. Freitas do Amaral, a prudência e cautelas requeridas em matérias que o Governo qualificava de «melindrosas».

É pois impossível admitir-se que as tarefas que a Marinha e a Força Aérea vinham desempenhando no campo da fiscalização marítima, etc., etc. não tivessem sido abordadas nestas consultas. (A menos que, tacitamente, elas não fossem para abordar, por já se saber a decisão política final – continuar tudo sem alteração – qualquer que fosse o texto da lei a ser publicado.

… …
O Sr. Lopes Cardoso (UEDS): - Sr. Vice-Primeiro-Ministro e Ministro da Defesa, quando V. Ex.ª abordou a passagem da fundamentação do veto presidencial relativa à constitucionalidade ou inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 24.º, disse que a participação das Forças Armadas na manutenção da ordem interna não era, em si mesma, inconstitucional, afirmando que o artigo 275.º permitia, pelo menos, essa participação no caso do estado de sítio ou do estado de emergência. A dúvida que me surge é que quando o Sr. Vice-Primeiro-Ministro fala em «pelo menos» deixa pressupor que existirá um «pelo mais». Isto é, gostaria de saber se o Sr. Vice-Primeiro-Ministro entende que, exceptuando o caso do estado de sítio e do estado de emergência, consagrado no artigo 275.º da Constituição, é legítimo, face à Constituição da República Portuguesa, a participação das Forças Armadas em quaisquer missões de manutenção da ordem interna.
... ...
O orador (Freitas do Amaral – vice 1.º Ministro e MDN): … … Sobre as tais missões indefinidas de que o Sr. Deputado nos falou, diz a Constituição que a lei definirá quais são os termos em que essas missões podem ser desempenhadas. Portanto, se é a lei que o vai fazer, o Sr. Deputado não tem grandes razões para estar preocupado, porque em qualquer dos casos a matéria será aqui amplamente discutida.
... ...
O orador (Freitas do Amaral – vice 1.º Ministro e MDN): Pergunta o Sr. Deputado se todas as soluções consagradas nesta lei são as melhores. Sr. Deputado, resulta daquilo que lhe disse que nalguns casos entendo que não, nalguns casos entendo que são as melhores, noutros casos entendo que são as possíveis, noutros entendo que são as convenientes, mas não recuso ou recusei, de modo nenhum - o Sr. Deputado enganou-se - qualquer reconsideração. Toda a minha intervenção foi uma reconsideração dos problemas. Simplesmente cheguei a uma conclusão diferente da do Sr. Deputado.
O Sr. Deputado Lopes Cardoso esteve com atenção ao meu discurso, o que lhe agradeço. Deu por uma partícula minúscula que foi o «pelo menos» e queria dizer-lhe que a razão da minha prudência é esta [Freitas do Amaral já não tem por onde “fugir” à questão… e vai mesmo responder-lhe]: é que há na legislação ordinária portuguesa toda uma série de disposições, algumas feitas até por Governos em que o Sr. Deputado participou, que atribuem às Forças Armadas, fora do contexto da defesa nacional, que essa sabemos que está constitucionalmente vocacionada só para enfrentar a ameaça externa, determinadas missões que têm a ver com problemas - não diria de ordem pública -, num sentido amplo, de segurança. Estou a pensar, por exemplo, na legislação sobre requisição militar, estou a pensar noutras questões passadas no espaço aéreo ou no espaço marítimo, em que tradicionalmente se tem confiado à Marinha de Guerra e à Força Aérea, missões que em rigor são, talvez, missões mais de natureza policial do que natureza militar. Mas como o país é pequeno não tem, talvez, a capacidade financeira para dotar as suas polícias de meios aéreos e navais profundamente desenvolvidos, tão desenvolvidos quanto será necessário para assegurar os meios de fiscalização e os fins de fiscalização que são necessários. Tem havido, pois, determinada legislação que tem confiado essas missões designadamente à Força Aérea e à Marinha de Guerra.
Para mim não é líquido que a revisão constitucional tenha querido, de uma penada, e sem uma consideração atenta desses problemas, pura e simplesmente proscrever o emprego das Forças Armadas nesse tipo de missões. É por isso que se faz aqui uma referência a outras missões de interesse geral a cargo do Estado, embora tendo o cuidado de dizer que só poderão ser desenvolvidas nos termos da lei, isto é, que a Assembleia da República terá de se pronunciar sobre isso e terá de definir sobre isso uma orientação.
Portanto, quando dizia o «pelo menos» queria referir-me a esse tipo de situações, em que para mim não é nada líquido e penso que seria, porventura, muito inconveniente que se entendesse que pura e simplesmente, a revisão constitucional proibiu isso tudo e impõe ao Estado português que vá agora, de repente, apetrechar a PSP e a GNR ou um novo corpo de polícia que para o efeito venha a ser criado, com meios navais e aéreos poderosos para desempenhar todas essas funções de fiscalização.
Aplausos do PSD, do CDS e do PPM.

Depois desta resposta de Freitas do Amaral, aplaudida como se viu pelo CDS, pelo PSD e pelo PPM, o deputado interpelante (Lopes Cardoso - UEDS) não fez qualquer intervenção nem pediu qualquer esclarecimento adicional, sinal de que ficou satisfeito e/ou não viu razão para lhe contrapor o que quer que fosse. Também, até ao final da sessão, nenhum outro deputado, de qualquer partido, levantou qualquer questão sobre o assunto. O significado é idêntico.

… …
O Sr. Presidente: - … … Assim, Srs. Deputados, vamos proceder à votação na generalidade, que versa sobre a confirmação do decreto da Assembleia da República que aprovou a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.
Submetido à votação, foi aprovado de novo, por maioria de dois terços, com 154 votos a favor (do PSD, do PS, do CDS e do PPM), 42 votos contra (do PCP, do MDP/CDE e da UDP) e 4 abstenções (da ASDI e da UEDS).
… …

Aparentemente, a Lei de Defesa Nacional, publicada escassos dois meses depois da revisão constitucional, já estava a beliscar a lei fundamental no que às Forças Armadas dizia respeito!
Ao analisar uma lei, nem sempre é possível descortinar o espírito do legislador. Este não é, felizmente, o caso: Freitas do Amaral, professor de Direito, Vice-Primeiro Ministro e Ministro da Defesa, autor do projecto de lei de Defesa Nacional e certamente que também dos artigos sobre as Forças Armadas (entre outros) da revisão constitucional, não podia ter sido mais claro. As várias “portas” que foi abrindo (e que atrás assinalámos) queriam dizer que a referência a “outras missões de interesse geral a cargo do Estado” eram precisamente as que a Marinha e a Força Aérea vinham desempenhando fora do estrito quadro da defesa militar da República – incluindo as de fiscalização, que expressamente refere, e que continuaram a desempenhar.
Retome-se o que Freitas do Amaral disse dezoito anos mais tarde sobre este assunto no já citado Colóquio “Forças Armadas em Regime Democrático”, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa, Fevereiro de 2000:
Bom, portanto creio que com dificuldades, com alguma crispação, com momentos difíceis como as tais greves gerais ou as tais ameaças feitas ao Ministro francês, as coisas acabaram por correr bem, e penso que foi de facto um momento muito significativo. Eu acho que a revolução em Portugal teve dois momentos em que terminou: terminou primeiro nas ruas e nos quartéis com o 25 de Novembro de 1975; e terminou depois nas instituições com a aprovação da revisão constitucional de 82 e com a lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, também no final de 82. Foi portanto, a meu ver, um momento decisivo.
… …”

Passado este longo período de tempo, com a Marinha e Força Aérea a desempenharem ininterruptamente aquelas missões, o legislador continua a considerar que as “coisas correram bem” – o que é esclarecedor. (Ver em 7 Outubro 1982 mais excertos desta intervenção)

27 Novembro 1982 Diário da Assembleia da República I Série - Número 19. Sábado, Reunião Plenária de 26 de Novembro de 1982
… …
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, para uma declaração de voto relativa à votação na generalidade do Decreto da Assembleia da República n.º 90/11, de 29 de Outubro último, sobre a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, o Sr. Deputado Lino Lima.
O Sr. Lino Lima (PCP): … …
a) Em primeiro lugar, expurgar o decreto das inconstitucionalidades que o caracterizam. Por isso se propõe a eliminação da possibilidade de atribuição às Forças Armadas de missões de suposto «interesse geral a cargo do Estado» (artigo 24.º, n.º 3);
… …

O PCP continua com receio de as Forças Armadas serem empregues como forças de segurança contra as lutas dos trabalhadores. Nenhuma referência se fez às missões de fiscalização, etc. a cargo da Marinha e da Força Aérea. 

O Sr. José Luís Nunes (PS): … …
a)        As missões «de interesse geral a cargo do Estado» referidas no n.º 3 do artigo 24.º da Lei n.º 90/II são, obviamente, as «tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações» (artigo 275.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa). Aqui, como em outros pontos, importa ler, conjugadamente, a Lei de Defesa Nacional e a Constituição da República Portuguesa;
… …

Freitas do Amaral havia explicado dois dias antes algo completamente diferente. Não há dúvida que a confusão ainda persistia em muitos espíritos. Ou então José Luís Nunes (PS, que havia votado a favor da lei) pretende simplesmente retirar receios aos partidos à sua esquerda.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passamos agora às propostas relativas ao artigo 24.º, relativamente ao qual há uma proposta de eliminação, no n.º 3, de uma expressão, pelo que se trata de uma proposta de emenda e não de eliminação - e ainda, relativa também ao n.º 3, uma outra proposta de emenda. Foram apresentadas, respectivamente, pelo PCP e pelo MDP/CDE.
Vão ser lidas pela ordem indicada.
Foram lidas. São as seguintes:
Propõe-se que no n.º 3 do artigo 24.º seja eliminada a expressão «desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado».
Proposta de emenda
No n.º 3 propomos a eliminação das expressões «desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado» e «sem prejuízo da missão genérica referida no n.º 1».
… …
O Sr. Lino Lima (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O artigo 24.º diz respeito às missões das Forças Armadas. E já sabemos que as missões das Forças Armadas relativas à defesa nacional estão hoje esclarecidas, por se encontrarem expressas na Constituição e na lei; trata-se, portanto, de missões respeitantes à defesa militar contra qualquer agressão ou ameaça externas. Quanto às missões de segurança interna, a intervenção das Forças Armadas só pode ser feita nas situações de estado de sítio ou de estado de emergência.
Portanto, a expressão «desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado» é ambígua e excede as missões que a Constituição atribuiu às Forças Armadas na ordem interna, e é essa a razão pela qual propomos a eliminação da expressão.
… …
O Sr. Mário Tomé (UDP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A UDP está de acordo com esta proposta de eliminação. E, em nosso entender, não há qualquer hipótese, possibilidade ou fundamento para a interpretação há pouco expendida pelo Sr. Deputado José Luís Nunes de que essas outras missões de interesse geral a cargo do Estado sejam, em conformidade com a Constituição da República, as tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações.
Porque, se assim fosse, as missões de interesse geral a cargo do Estado não estariam explicitadas no mesmo número, como aquelas que são a reprodução directa e total do que diz a Constituição. É porque, de facto, se trata de coisas diferentes que a lei entende deverem estar aqui diferentemente explicitadas, abrindo, assim, o caminho à intervenção das Forças Armadas a mando do Governo para, quando lhe apetecer e aprouver, reprimir as lutas dos trabalhadores.
… …

A UDP não podia ser mais clara ao explicitar a razão pela qual deseja ver eliminada a hipótese das Forças Armadas assumirem “outras missões de interesse geral a cargo do Estado”. Nenhuma referência se fez às missões de fiscalização, etc. a cargo da Marinha e da Força Aérea. 

O Sr. Herberto Goulart (MDP/CDE): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Nós propomos a eliminação de duas expressões: uma que foi já defendida pelo Sr. Deputado Lino Lima e uma outra que consta exclusivamente da nossa proposta e que é a eliminação de «sem prejuízo da missão genérica referida no n.º 1».
Esta nossa proposta tem uma razão muito simples. No n.º 3, o artigo 24.º, para além das duas expressões cuja eliminação se propõe, é uma reprodução do n.º 5 do artigo 275.º da Constituição da República; não tem nenhuma ressalva quanto ao não prejuízo da missão genérica das Forças Armadas, mas tal ressalva é perfeitamente óbvia dentro do princípio seguido na Lei de Defesa Nacional - sempre que se reportava à Constituição da República procurava reproduzir-se exactamente o texto constitucional -, pelo que nos parece perfeitamente coerente a eliminação da parte final.
Relativamente à eliminação da expressão «outras missões de interesse geral a cargo do Estado», não deve permitir-se às Forças Armadas o desempenho de missões cujo conteúdo não é claro. Também as explicações para a justificação desta expressão não foram, quanto a nós, pertinentes - e estou a referir-me às intervenções feitas anteontem, em resposta, digamos assim, à argumentação aduzida pelo Sr. Presidente da República no respectivo veto presidencial.
Entendemos, assim, que a expressão é completamente desnecessária. E isto - visto que a única outra situação que se poderia conceber para a utilização das Forças Armadas sem ser para a segurança externa do Estado ou esta participação em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e melhoria da qualidade de vida das populações - seria apenas a intervenção das Forças Armadas em situações de estado de sítio ou de estado de emergência. Só que tais situações estão regulamentadas na própria lei em artigo próprio (o artigo 68.º, que estabelece que tais regimes fixarão as condições de emprego das Forças Armadas em tais situações), não havendo, pois, lugar, a não ser que se abram interpretações não correctas a esta expressão, a qualquer outra intervenção das Forças Armadas que não esteja já coberta por outros mecanismos da lei.

Art.º 68.º - Emprego das Forças Armadas no estado de sítio e no estado de emergência – As leis que regulam os regimes do estado de sítio e do estado de emergência fixam as condições do emprego das Forças armadas quando se verifiquem aquelas situações.

Portanto, esta expressão ou é um erro material na feitura da lei - e como tal deve ser corrigido -, ou, por parte de alguns dos que insistam na sua permanência, significa que há outras intenções quanto a uma possível cobertura à utilização das Forças Armadas para além da que está constitucionalmente expressa, do que consta da Lei de Defesa Nacional, muito concretamente em situações sem legitimidade de uso na ordem interna.
… …

Tudo leva a crer que os receios do MDP/CDE são idênticos aos do PCP e da UDP. Também nenhuma referência se faz às missões de fiscalização, etc. a cargo da Marinha e da Força Aérea. 

O Sr. Presidente:… … Vamos, então, votar a proposta apresentada pelo PCP.
Submetida à votação, foi rejeitada, com 113 votos contra (do PSD, do PS, do CDS, do PPM e da ASDI) e 35 votos a favor (do PCP, do MDP/CDE e da UDP).
O Sr. Presidente: - Vamos votar agora a proposta apresentada pelo MDP/CDE.
Submetida à votação, foi rejeitada, com 115 votos contra (do PSD, do PS, do CDS, do PPM e da ASDI) e 37 votos a favor (do PCP, da UEDS, do MDP/CDE e da UDP).
… …

O Sr. Mário Tomé (UDP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Apenas queria referir que com esta votação fica claro na Lei de Defesa Nacional que as Forças Armadas poderão vir a ser utilizadas para além daquilo que a própria Constituição da República, já de si revista pela aliança AD/PS, prescreve. Isto é, as Forças Armadas poderão, face a esta lei, ser utilizadas de uma forma inconstitucional, pois podem ser postas directamente ao serviço da repressão, ao serviço de acções aventureiras deste ou de qualquer outro Governo.
O Sr. Magalhães Mota (ASDI): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Votámos a manutenção do n.º 3 do artigo 24.º por razões que nos parecem merecer alguma explicitação. Nesse sentido me proponho fazer esta declaração de voto.
De facto, e como foi referido, as missões que podem ser atribuídas às Forças Armadas não são necessariamente missões de segurança interna, visto que estas estão excluídas pelo sentido da Constituição que define com precisão a missão das Forças Armadas como exclusivas à defesa externa da República.
Também o n.º 3 do artigo 24.º não pode ser entendido, ao contrário do que aqui foi sustentado, como significando as tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas ou com a melhoria da qualidade de vida das populações, visto que essas estão expressamente referidas no n.º 3 do artigo 24.º e, portanto, não faria sentido a disjuntiva.
Também não pode este artigo ser interpretado como uma referência ao estado de sítio ou ao estado de emergência, visto que estas situações são objecto de outras disposições expressas, não fazendo sentido inclui-las aqui.
O sentido da nossa votação não tem, portanto, nada a ver com estas razões, que nos parecem todas erradas. Apenas se relaciona com uma outra circunstância extremamente simples: há situações que não são nem de estado de sítio, nem de estado de emergência, nem, por outro lado, são satisfação de necessidades básicas ou de melhoria de condições de vida da população, mas que têm a ver com a colaboração das Forças Armadas. Refiro-me muito concretamente a situações em que, como na minha região, o Ribatejo, se vivem situações de cheias. Não se trata de uma situação de estado de sítio ou de estado de emergência, mesmo localizado, mas a colaboração das Forças Armadas torna-se aí, não só extremamente útil, como indispensável. Há ainda outras situações de isolamento das populações e de socorros.
... …

Magalhães Mota (ASDI, que havia votado a favor da lei), ao falar apenas em “colaboração” também não segue em rigor a interpretação de Freitas do Amaral: na verdade, o n.º 3 do art.º 24.º define que A lei regula os termos em que as Forças Armadas podem desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado[entenda-se portanto: as Forças Armadas sozinhas, por si sós] ou colaborar [entenda-se: as Forças Armadas em conjunto ou em auxílio a outras entidades] em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, sem prejuízo da missão genérica referida no n.º 1.” Mas em todo o caso, admite o concurso das Forças Armadas noutro tipo de missões que não as explicitamente tipificadas no novo art.º 275.º da Constituição.

O Sr. Mário Tomé (UDP): - Isso, Sr. Deputado, tem a ver com as necessidades básicas das populações!
O Orador: - Eu penso que não e estava a dizê-lo. É precisamente por isso que penso que uma lei especial faz sentido neste n.º 3 do artigo 24.º, porque não atribui nem missões de segurança incluídas no estado de sítio ou no estado de emergência, nem atribui missões que impliquem a melhoria da qualidade de vida das populações.
Por isso votamos favoravelmente a sua manutenção.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Veiga de Oliveira.
O Sr. Veiga de Oliveira (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Farei uma curta declaração de voto apenas para explicar porque propusemos e votámos a eliminação da expressão.
Ao contrário do que aqui foi dito e sustentado pelo Sr. Vice-Primeiro-Ministro e Ministro da Defesa, esta expressão não é necessária para que as Forças Armadas possam desempenhar funções, como já hoje desempenham, de salvamento - quer no mar, quer em terra -, de ajuda a combate a incêndios e outras funções deste tipo.
O Sr. Deputado que acabou de falar - e que entretanto saiu, talvez por ter sido chamado - fez uma exposição que peca por demonstrar exactamente o contrário daquilo que quis dizer. Efectivamente, não podemos excluir da melhoria da qualidade de vida das populações o ataque a incêndios, por exemplo, assim como o salvamento de pescadores e outras situações deste tipo que cabem justamente à Força Aérea e à Marinha, mas também ao Exército, quando as circunstâncias o exigem.
Portanto, as missões já hoje atribuídas às Forças Armadas, e que não são a defesa militar da República, [desde logo a fiscalização das nossas águas] estão perfeitamente contidas no texto constitucional. Não se justificaria que agora, a pretexto de uma interpretação que, quanto a nós, não colhe, se viesse violar o próprio texto. Isto é, começava por se dizer: o texto não chega, violemos o texto!
Não é disto que se trata. O que nós propusemos é que desaparecesse uma expressão que, não sendo necessária para aquelas missões referidas pelo Sr. Vice-Primeiro-Ministro e agora pelo Sr. Deputado Magalhães Mota, abra entretanto a porta a outras actuações das Forças Armadas que de todo em todo não são admissíveis constitucionalmente, nem tão pouco politicamente, pelo menos pela nossa parte.
… …

O PCP entende, tal como Freitas do Amaral, que o texto constitucional permite outras missões às Forças Armadas para além da defesa militar da República (que aliás já vêm desempenhando, tal como a fiscalização da pesca, a defesa da ZEE, etc. Nada a objectar a elas, portanto). Desnecessário, por conseguinte, incluir o n.º 3 do art.º 24.º, que poderá abrir a porta a “outras actuações” (entenda-se: o seu emprego como força de segurança na repressão das lutas dos trabalhadores).

O Sr. Presidente: - … … Por outro lado, pensa a Mesa que … … não há lugar a votação final global. Este é o entendimento da Mesa.
Consequentemente, a Mesa declara confirmado por maioria de dois terços o Decreto n.º 90/II - Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas -, tendo o apoio de dois terços dos deputados presentes ocorrido não só na votação na generalidade, mas também na especialidade, na rejeição de todas as propostas de modificação do texto inicial, que assim será reenviado para promulgação obrigatória a Sua Ex.ª o Sr. Presidente da República, no texto original, sem qualquer alteração.
Aplausos do PSD, do CDS, do PPM e de alguns deputados do PS.

É notório que apesar do esclarecimento de Freitas do Amaral, a confusão persistia quanto ao sentido da expressão “outras missões de interesse geral do Estado” e à sua inclusão na Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Mas ninguém contesta a legitimidade constitucional de a Marinha e a Força Aérea exercerem missões de fiscalização. O PCP disse isso mesmo explicitamente, pela voz de Veiga de Oliveira. A 25 de Novembro, PPM, PPD e CDS aplaudiram a intervenção de Freitas do Amaral sobre a realização de “outras missões de interesse geral a cargo do Estado”, designadamente a defesa e fiscalização das nossas águas feita pela Marinha e pela Força Aérea. O PS, que havia suscitado aquela intervenção nada replicou, sinal que a aceitou. A UEDS que, como se disse, tanto havia exigido e defendido o desempenho dessas missões por meios da Marinha e da Força Aérea, não mudou de opinião (ver, por exemplo 25 e 26 Novembro 1983, 14 Dezembro 1984). Idem, MDP/CDE (ver 20 Fevereiro 1987).

11 Dezembro 1982 – Lei 29/82 – Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) (revogada pela Lei n.º 1-B/2009, de 7 Julho 2009):

… …
ARTIGO 24.º [revogado pela Lei Orgânica n.º 111/91] 
(Missões das Forças Armadas)
1 - A missão genérica das Forças Armadas consiste em assegurar a defesa militar contra qualquer agressão ou ameaça externas.
2 - Dentro da missão genérica referida no número anterior, serão definidas pelo Conselho Superior de Defesa Nacional as missões específicas das Forças Armadas, mediante proposta do Ministro da Defesa Nacional elaborada sobre projecto do Conselho de Chefes de Estado-Maior.
3 - A lei regula os termos em que as Forças Armadas podem desempenhar outras missões de interesse geral a cargo do Estado ou colaborar em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, sem prejuízo da missão genérica referida no n.º 1.
… …

ARTIGO 73.º
(Actualização de legislação)
... ...
2 - Serão igualmente aprovados ou revistos, dentro de 18 meses a contar da entrada em vigor desta lei, diplomas referentes às matérias seguintes:
... ...
g) Domínio público marítimo, serviço geral de capitanias e uso do espaço aéreo, tendo em atenção as necessidades da defesa nacional.
... ...

Publicada a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, a realização de missões de carácter civil pela Marinha e pela Força Aérea prosseguiram sem qualquer alteração nem, que se saiba, qualquer tomada de posição pública de políticos ou outros, positiva ou negativa, sobre o assunto. 

Outubro – Dezembro 1982 – Anais do Clube Militar Naval – número temático dedicado à ZEE.
- “ZEE: para uma metodologia global de abordagem” –  A. B. Rodrigues da Costa, c. t. O autor destina à Marinha a função de fiscalização e controlo da ZEE.
- “A Zona Económica Exclusiva. Sua Legitimidade e Contornos Jurídicos”M. P.  B. Limpo Serra c.m.g.
- “Fiscalização das Águas de Interesse Nacional”A. C. Fuzeta da Ponte, c.m.g. O autor define a fiscalização das águas nacionais como missão da Marinha.
- “A ZEE versus C3” – Quesada de Andrade, c.m.g. – O autor define um modelo C3 de apoio ao sistema de fiscalização e às acções levadas a cabo por meios navais e aéreos.
- “O Plano Nacional das Pescas e a ZEE”Carlos Caldeira Saraiva c. alm ECN
– “A Zona Económica Exclusiva. Porquê 200 milhas?” - E. H. Serra Brandão, c.f. RA
- “Para quê uma ZEE sem peixe?”Rui Sá Leal, 1.º t. [o autor do presente estudo] e José Joaquim P. Castro Centeno, 1.º t. – Os autores debruçam-se sobre o estado das pescas, a legislação em vigor e algumas considerações sobre a fiscalização (a cargo da Marinha), Tribunais, etc.
- “Poluição no Mar” – Nelson Sousa, c.f. EMQ  

22 Março 1983 – Manifesto Eleitoral do CDS – é omisso no respeitante às Forças Armadas.
9 Junho 1983          – IX Governo Constitucional – Bloco Central (PS / PSD) – 1.º Ministro: Mário Soares; Vice-Primeiro Ministro e Ministro da Defesa: Mota Pinto (9 Jun 83); Rui Machete (15 Fev 85); Ministro do Mar: Carlos Melancia (15 Fev 85); José Serra (6 Nov 85).

Programa:
… …
1 – Defesa nacional
… …
1.2 - Principais medidas 
1 - Elaboração da lei orgânica do Ministério da Defesa Nacional e sua implementação de forma gradual e progressiva até ao seu pleno funcionamento. 
2 - Elaboração da legislação complementar da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, nos termos e nos prazos estabelecidos nesta lei, nomeadamente no que respeita às seguintes matérias:
… …
- Domínio público marítimo, serviço geral de capitanias e uso do espaço aéreo, tendo em atenção as necessidades da defesa nacional.
… …

O PS continua a considerar estas questões no âmbito da Defesa Nacional e das Forças Armadas.


14 Julho 1983         – Decreto-Lei n.º 333/83 – Aprova a Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana. Foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 231/93, com excepção:
a) Dos artigos 29.º e 30.º, cuja revogação produz efeitos com a entrada em vigor de uma nova lei de segurança interna;
b) Dos artigos 33.º, 92.º e 94.º, cuja revogação produz efeitos com a entrada em vigor de um novo Estatuto dos Militares da Guarda.
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Artigo 1.º
(Definição)

  A Guarda Nacional Republicana é um corpo especial de tropas que faz parte das forças militares, votado à causa da segurança e manutenção da ordem pública, bem como à protecção e defesa das Populações e da propriedade pública, privada e cooperativa.

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Artigo 34.º
(Áreas de responsabilidade)

1 - A responsabilidade territorial da Guarda Nacional Republicana exerce-se sobre a parte continental do País, excluídas as zonas urbanas e outras especialmente cometidas à Polícia de Segurança Pública e à Guarda Fiscal, onde a intervenção da Guarda Nacional Republicana seja condicionada ao pedido daquelas, à sua ausência momentânea ou a ordem superior.

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16 Julho 1983 Diário da Assembleia da República I Série - Número 23. Reunião Plenária de 15 de Julho.
… …
SUMARIO. – … … Foi aprovada na generalidade, na especialidade e em votação final global a proposta de lei n.º 27/III, que concede autorização ao Governo, através do Ministério das Finanças e do Plano, para celebrar com o Federal Financing Bank um contrato de empréstimo, até ao montante US$ 40.000.000, para aquisição de material e equipamento de defesa proveniente dos EUA.
… …
O Sr. António Gonzalez (INDEP.): … … Para já penso que a defesa de um país se faz através da resolução dos problemas internos, através da resolução de todos os problemas que nos afectam e não pelo enchermo-nos de armas.
Gostava, pois, de fazer as seguintes perguntas: o que vamos, para nossa defesa - como se pode ler -, comprar com este dinheiro? não se refere que tipo de armamentos se trata: se é electrónico, se é fardamento, se são aviões, se são mísseis, se são armas químicas, bacteriológicas, e essas coisas, se vamos comprar mais tanques, se vamos comprar munições ou um submarinozinho nuclear para ter ali em Cacilhas, por exemplo ... Com este dinheiro poderíamos comprar o equipamento necessário à nossa indústria ou aos nossos hospitais, laboratórios, investigação universitária ou outros.
O que se vai comprar? O fundamental não poderá ser comprado cá? Esses equipamentos para a defesa vão ser utilizados no apoio à sociedade civil? Mais equipamentos que para mim e para nós, «Verdes», poderão nesta fase actual ser ainda utilizados para apoio à sociedade civil, por exemplo, no combate aos fogos, na vigilância da costa, nomeadamente no tocante a todos os pescadores clandestinos que nos invadem. Quando me refiro a isto, refiro-me para os três ramos das Forças Armadas e não necessariamente só para a Força Aérea, só para a Marinha, só para o Exército, mas para todos eles.
Essas compras vão ser úteis à sociedade civil, por exemplo, na vigilância e salvamento em caso de naufrágios e outros? Ou, como eu disse aqui há uns dias, vão ser mais sucata futura e luxuosos e desnecessários brinquedos?

Para este deputado independente, a prioridade das acções das Forças Armadas vai para as missões de interesse público.

14 Outubro 1983 – Decreto N.º 79/83o Governo aprova para ratificação a Convenção SOLAS 74, que havia entrado em vigor internacionalmente em 1980.
… …

Regra 15
Busca e salvamento
a) Cada Governo Contratante compromete-se a assegurar que são tomadas todas as disposições necessárias para a vigilância da costa e salvamento das pessoas em perigo ao largo da costa. Estas medidas devem incluir o estabelecimento, operação e manutenção de todas as instalações de segurança marítima julgadas praticamente realizáveis e necessárias, tendo em atenção a intensidade do tráfego marítimo e os perigos da navegação, e devem, tanto quanto possível, fornecer meios apropriados para localizar e salvar as pessoas em perigo.
b) Cada Governo Contratante compromete-se a fornecer informações relativas aos meios de salvamento de que dispõe e aos planos para modificação de tais meios, se os houver.
… …

Portugal só ratifica esta Convenção quase nove anos depois de ter sido redigida e três anos depois de ter entrado em vigor. Só o faz, naturalmente, porque considerava ter reunidas as condições para assumir as responsabilidades que ela implica. Na verdade há longo tempo que vem prestando assistência a sinistros no mar com o recurso a meios navais e estruturas de comando da Marinha e da Força Aérea. Por conseguinte, nada se tendo feito em relação a novos meios operacionais (e outros) entre 74 e 83, fica claro que a intenção era, como de facto foi, continuar a recorrer aos que até então eram utilizados – ou seja, da Marinha e da Força Aérea.   

22 Outubro 1983 – Decreto-Lei n.º 392/83
Considerando as dúvidas suscitadas a propósito da vigência do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 282/76, de 20 de Abril, quanto à sujeição ao foro militar do pessoal militarizado da Marinha, disposição supostamente derrogada pelo actual Código de justiça Militar, cumpre clarificar, sem margem para dúvidas, o espírito da referida norma e traduzir a intenção manifestada pelo legislador, em toda a estrutura do diploma, de colocar o pessoal militarizado da Marinha em situação idêntica aos militares, solução objectivamente correcta, continuadamente defendida pelo órgão militar directamente responsável pela preparação, disciplina e emprego dos meios da Armada.
Torna-se, pois, necessário interpretar autenticamente, e sem carácter inovador, aquela disposição.
Assim, o Governo decreta, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º As referências feitas no Código de justiça Militar a militares, oficiais, sargentos ou praças compreendem os elementos do pessoal militarizado da Marinha, atentas as equivalências de categorias e postos estabelecidos nos respectivos ramos.
Art. 2.º O presente diploma tem natureza interpretativa.
… …
Importa relevar que em 1983, já depois da 1.ª revisão Constitucional, o governo viu-se na necessidade de aprovar um diploma interpretativo (decreto-lei 392/83), em que assume objectivamente correcta a sujeição dos militarizados da Marinha ao foro militar. Este contencioso, só viria a ter um fim em 1990, com a declaração de inconstitucionalidade da norma, com força obrigatória, pelo Novembro, sem que antes, o governo não tivesse aprovado novo diploma, em 1984, (decreto-lei 337/84), no mesmo sentido do diploma interpretativo anterior.

O n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 282/76 foi declarado inconstitucional pelo acórdão 308/90, de 21 de Janeiro do Tribunal Constitucional.

25 Novembro 1983 Diário da Assembleia da República I Série - Número 53. Reunião Plenária de 24 Novembro de 1983

… …
O Sr. António Gonzalez (Indep.): - ... ... Segunda questão: o empréstimo que foi aqui aprovado, em Julho, de cerca de 5 milhões de contos, para aquisição de equipamento militar, dito de defesa, está já incluído nesta verba de 68 milhões e 724 000 contos para a Defesa Nacional?
Se estão, gostaria de saber se já se sabe o que vamos comprar? Irão ter, fundamentalmente, finalidade de apoio à sociedade civil, como indicou na sua intervenção? Esse material é em primeira ou segunda mão, visto ser conhecida a nossa posição de compradores de sucata no estrangeiro?
... ...
O Sr. César Oliveira (UEDS): … …Uma das discussões a ter aqui, que nunca foi feita - aliás, creio eu, nós falamos muito mas discutimos pouco -, é em relação a que tipo de forças armadas e a que tipo de interesses essas forças armadas devem ser dirigidas. Refiro-me concretamente, por exemplo, à fiscalização da nossa Zona Económica Exclusiva, o que pressupõe, por exemplo, um desvio nas despesas tradicionais das Forças Armadas Portuguesas. Ou seja, nós queremos equipar de facto a Marinha de Guerra Portuguesa, de modo a poder eficazmente zelar pelo acautelamento dos interesses portugueses na nossa Zona Económica Exclusiva, ou queremos continuar a privilegiar outros sectores que, de facto, não cobrem interesses fundamentais que Portugal tem que salvaguardar? De facto, nunca fizemos essa discussão. Não vejo que V. Ex.ª se tenha referido a estes problemas na sua intervenção.
… …

A UEDS insiste no correcto apetrechamento da Marinha para a fiscalização da ZEE.

26 Novembro 1983 Diário da Assembleia da República I Série - Número 54. Reunião Plenária de 25 Novembro de 1983
… …
O orador O [Sr. Joel Hasse Ferreira (UEDS)]: … … No que se refere às despesas com a defesa, pensamos que urge reequacioná-las, não tanto em termos de um eventual «conceito abrangente de segurança estratégica», mas sim correlacionando essas despesas com os objectivos, designadamente da nossa Marinha e Exército, e com os objectivos nacionais. E assim, diríamos que à nossa marinha de guerra deve preocupar mais a defesa dos peixes e crustáceos da Zona Económica Exclusiva e a protecção dos nossos barcos pesqueiros do que uma eventual ameaça naval externa.
… …


É clara a prioridade que a UEDS atribui às missões de carácter civil da Marinha.

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